blogue

11/01/16

Pelo pai: uma morte digna

Rebecca Ley, The Guardian

No seu formato, é muito parecido com qualquer outro documento oficial: tem quadrículas, espaços para assinaturas e vinhetas. Visto de relance, poderia ser um pedido de passaporte ou de renovação do imposto de circulação. Porém, quando paramos para o ler atentamente, torna-se óbvio que é uma coisa completamente diferente. O título que figura na parte superior é claro: "Ordem para permitir uma morte digna". 
 
Em vez de planificar a vida, o impresso descreve a morte – se é que tal coisa é possível. E, até onde sei, este título é uma forma mais delicada de dizer "não ressuscitar". Assim, não soa tão fortemente, mas o pano de fundo é o mesmo: em caso de paragem cardíaca ou respratória, não deve fazer-se nenhuma manobra de reanimação cardiorrespiratória (RCP). 
 
Para alguém que esteja tão mal como o meu pai, este é um tema muito importante que deve estar claro quando o momento chegar. Por isso, na última vez que estivemos em Cornwall, a minha irmã mais nova e eu ajudámos uma das enfermeiras do nosso pai a preencher um formulário neste sentido. A enfermeira tinha-nos falado sobre isso num dos dias em que fomos visitá-lo. Disse-nos, amavelmente, que talvez tivesse chegado a hora de começarmos a pensar em como encarar essa situação. 
 
Nesse mesmo momento, acordámos com ela uma reunião, dias mais tarde, onde definiríamos a posição da família quanto a essa questão. Os familiares que não puderam estar presentes foram consultados por telefone, visto que ninguém tem um poder notarial através do qual seja responsável pela saúde do meu pai (a procuração que eu e a minha irmã temos só se aplica às suas finanças). Como tal, as decisões sobre como atuar nesta etapa final da sua vida não recaem nas mãos de apenas uma pessoa, mas estarão antes assentes num consenso entre aqueles que dele cuidam e a sua família. 
 
Mas a decisão foi simples. Todos nós, que estamos ligados ao meu pai, concordámos que em caso de sofrer uma falha cardíaca, não deveria ser reanimado. O seu corpo é tão frágil e a sua mente está tão fraturada que não seria possível conceber tal ação como um ato de bondade. 
 
A reunião foi simples, até mesmo superficial. A senhora que a conduzia era amável e meticulosa. Entretanto, o bulício da residência fazia-se sentir como barulho de fundo: telefones a tocarem, portas a cerrarem de rompante, o cheiro do jantar... De alguma forma, era difícil acreditar que estávamos a discutir tão tranquilamente como seria a morte do nosso pai. Mas isso é o que acontece quando alguém que amamos adoece com demência – passamos a aceitar coisas que, em abstrato, teriam parecido absolutamente impossíveis de contemplar por serem extremamente dolorosas. 
 
Eu e a minha irmã tivemos de falar da capacidade mental do nosso pai ou, melhor, da falta dela, para confirmar que era incapaz de entender a relevância desta decisão. Depois, conversámos com a enfermeira sobre os prós e os contras das diferentes opções. 
 
Ainda que não exista nenhuma ambiguidade quanto à RCP, a decisão sobre o que fazer caso o nosso pai sofra uma infeção respiratória é muito mais complexa. A pneumonia é uma das afeções mais comuns que levam à morte dos pacientes mas, como disse a enfermeira, se o nosso pai fosse tratado simplesmente com antibióticos e se fosse possível manter a sua qualidade de vida atual, então valeria a pena tratá-lo. 
 
Depois de falar sobre tudo isto pausadamente, a enfermeira escreveu que no caso de acontecer alguma eventualidade, deveria fazer-se uma reunião, nesse mesmo momento, com os funcionários da residência, a família e os médicos para tomarmos a melhor decisão. 
 
E foi tudo: dois formulários preenchidos e arquivados até ao dia em que se tornem necessários. Um dia para o qual espero que ainda falte muito tempo. Em seguida, eu e a minha irmã fomos diretamente ver o nosso pai à sala da residência. "As minhas filhas!", disse emocionado, em vez dos nossos nomes enquanto nos aproximávamos dele. Demos-lhe um beijo e sentá-mo-nos ao seu lado dando graças de novo pelo pai que temos agora, apesar de ser tão diferente do homem que antes conhecíamos.

Submeter um novo comentário