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28/08/14

A memória está nos beijos

Rafael López, contribuição para a Cooperativa de Despistados de La memoria es el camino

Há muitos anos perdias as tuas chaves. Há sete anos, a tua cabeça e o teu cérebro entraram num labirinto de loucura. Movias-te, falavas-nos, alegravas-te, contavas piadas mas começava a passar-se algo. Estavas com os teus animais e, de regresso a casa, perdias-te. Ordenhavas as cabras e tinhas de voltar a pôr o leite. Era a maldita memória. Estavas a perder a cabeça, dizias. Fomos acompanhando-te com os teus animais e, dia após dia, fazíamos o mesmo caminho, procurando que o teu cérebro recordasse o trajeto que percorreste durante tantos anos.  Acompanhamos-te com os cães para que pudesses sair em busca daqueles coelhos que a cada época te faziam voltar a vibrar. E já se fazia noite.

Até que chegou o dia em que tiveste de deixar os animais e a choça. Eu sei que, de vez em quando, dizias que tinhas de ir ver como estavam esses animais, mas não, já lá não estavam. E substituímos aquele caminho por passeios mais curtos e pela companhia diária.  

Ano após ano, fomos vendo como a luz se apagava. E continuamos a percorrer o caminho, acompanhando-te no teu regresso ao teu passado mais longínquo. Sei que nos pedes para ir a tua casa e mais do que uma vez percorremos o caminho daquela casa que já lá não está. Sei que para ti já só somos boas pessoas. Que estamos contigo, que te acompanhamos da melhor forma que sabemos e, possivelmente, nem sempre o fazemos da melhor maneira. Mas colocamos todo o nosso empenho. Por vezes, até nos faltam as forças, mas continuamos  porque sabemos que tu te esqueces mas, de momento, nós não.

Eu já sei que quando vês um rapazinho na rua, apetece-te ir ter com ele, dizer-lhe algo, brincar até. Seria o lógico porque no regresso ao teu passado longíquo foi, seguramente, uma das coisas que mais te divertiu.

E aqui continuamos. Não são bons tempos para que pessoas como tu sejam atendidas da melhor maneira. Há pacientes como tu a quem a família não pode tomar conta. Há gente como tu a quem é negada a ajuda a que têm direito. Há pessoas como tu que, definitivamente, não têm quem os alumie na sua escuridão. Dizem-nos que correm maus tempos, que há crise, que há que pagar dívidas e sei que quando te digo, olhas para mim e colocas um ligeiro sorriso maroto no rosto. E és tu quem não pode crer que depois de tantos anos a trabalhar, sim a trabalhar (que é a tua palavra favorita, a que te serve para dizeres que não fizeste nada de especial ou para simplesmente dizeres que estás sentado a ver os dias passar), seja tão difícil para os que nos governam agradecerem-te tanto trabalho. Às vezes penso que essa foi a tua única vida – trabalhar – e possivelmente será uma das poucas palavras com que ficarás até que no teu cérebro apareça, definitivamente, uma escuridão total.

Para todos os que estão como tu, pai, e por todas as pessoas que estão ao teu redor, por ti e por elas, mantemos o optimismo, lutamos, sofremos e protestamos para sermos atendidos da melhor maneira. Porque é verdade que a memória está nos beijos, mas também na exigência de justiça e dignidade para pessoas como tu.

Em memória das pessoas com Alzheimer, para que o seu esquecimento se torne na consciência de todos nós.

Rafael LópezBlogue: Libreta Canaria

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