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23/03/15

Pelo pai: a sua realidade

Por Rebecca Ley, The Guardian.

O corpo do meu pai está na sala para doentes de demência de uma residência de idosos em Cornwall, onde o lavam, alimentam e vestem. Não sei onde está a sua mente, essa mente mercurial, original e perspicaz que sempre me inspirou e que tanto respeitei. Desapareceu, consumida por completo. Por isso, todo o tangível que sobra dele está guardado num arquivador num canto da minha casa.

O rastro no papel da sua existência na terra: extratos do banco, faturas, fotos, cartas do seu contabilista, documentos de seguros, impostos e uma fotocópia rasgada do poder notarial em que nos autoriza, a mim e à minha irmã mais nova, a cuidar dos seus assuntos. Desde que está tão longe – não só fisicamente visto que eu vivo em Londres, mas também em todos os sentidos – esta função administrativa é o mais próximo que posso estar do seu “eu” real, ainda que tal não o  substitua em absoluto, pois claro. Decidir quais os documentos para reclamar a parte pendente de um subsídio ou programar pagamentos automáticos...

Estas tarefas não fazem lembrar realmente do meu pai, mas ajudam a sentir que estou a fazer algo por ele. E fazê-las torna-se mais fácil, muito mais fácil, do que visitá-lo. Pelo menos, tratando de toda a papelada, posso recordar o meu pai tal como era: encantador, orgulhoso, moderado, terrivelmente tímido e bonito – toda a gente dizia que em jovem parecia uma estrela de cinema. Um homem que deixava transparecer o seu estado de espírito desde o momento em que entrava pela porta. Ricocheteando de um turbilhão exuberante de planos para um paranoico solitário, receoso da música pop, de festas e de qualquer outro sinal de diversão. De qualquer forma, uma pessoa real e com os seus defeitos, não a carapaça vazia que vagueia pelos corredores da sua residência tentando chegar a algum sítio, a algum sítio que não está aí.

Entendo o seu desejo de escapar quando vou visitá-lo. Assim que a porta da sala onde está se fecha atrás das minhas costas, apodera-se de mim uma necessidade imperiosa de estar noutro lugar. Não aqui, com o cheiro das refeições e da lixívia que não chega a ser suficientemente forte para disfarçar outros cheiros. Não aqui, apesar dos cuidadores amáveis e dos detalhes minuciosos que pretendem fazer com que os residentes se sintam como se estivessem no mundo exterior, com candeeiros nos corredores e acesso direto ao jardim a partir dos quartos. Não aqui, neste salão despoluído e escassamente mobilado, com as suas prateleiras de bonecas e blocos de plástico, com jogos demasiado semelhantes aqueles com que a minha filha brinca.

Observar outros pacientes é, provavelmente, o mais duro. Sentados nas suas cadeiras, sem expressão, contemplando o infinito com os olhos presos em tempos melhores – ou piores, vagueando e demasiado conscientes do presente. Tenho vergonha de o admitir, mas não é difícil que esses olhares se tornem aterradores. A última vez que aí estive, um idoso agarrou-me com a parte de cima da sua bengala. Senti-me como se estivesse a ser puxada para o abismo e não consegui disfarçar o meu pânico até conseguir libertar-me dele. Outro acusou-me de lhe ter roubado a bebida, um copo de plástico com sumo. Continuei a sorrir tentando explicar-lhe que não tinha sido eu, embora não tenha conseguido tranquiliza-lo.

Teria gostado que o meu pai tivesse intervindo a meu favor, mas ele não deu conta de nada. Limitou-se simplesmente a tirar um boné imaginário em frente a outro idoso, como se o tivesse encontrado no caminho durante um passeio à noite. Agora, quase parece mais feliz com aqueles que não conhece. Recebe as mãos dos cuidadores com evidente intimidade, mas quando vou visitá-lo começa imediatamente a soluçar, consciente de que sou sua filha mas também de que não se recorda do meu nome. Olha de lado e evita estabelecer contacto visual, como se lhe doesse ver-me. A verdade é que quando tenho mais saudades do meu pai é quando estou sentada em frente a ele. Pelo menos em casa, remexendo nos seus papéis, sinto-me livre para o recordar tal como era. 

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