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11/08/15

Pelo pai: os seus conhecimentos, agora, são os meus

Por Rebecca Ley, The Guardian.

O meu pai odiava carros, ou pelo menos dizia-o a toda a hora. No entanto, eram um elemento fundamental da sua vida. Era dono de uma garagem de automóveis, tal como o seu pai, e trabalhou como mecânico e instrutor de condução quando era novo. Mas procurava sempre conduzir o carro mais pequeno e mais luxuoso que encontrava. E disparatava com os turistas que arruinavam as estradas rurais com os seus enormes veículos. Fazia-o com uma aversão tão grande contra quem conduzia Volvos, que nunca consegui entender o porquê.

"Porcos!", mastigava entre dentes em qualquer carro a gasóleo que estivesse a conduzir nesse momento. "Porcos condutores de Volvos!".

Apesar da sua antipatia, os carros acabavam por o procurar, dando-lhe o seu sustento. E sabia do que falava. Se fizermos caso da história que se conta na família, aos nove anos já tinha modificado o seu primeiro motor e anexou à garagem de casa uma zona própria para boxes. Frequentemente, a primeira coisa que perguntava quando conhecia alguém era que carro conduzia. Essa informação ajudava-o a classificá-lo/a. 

Por isso, perder a carta de condução por causa da doença de Alzheimer foi particularmente difícil para ele. Depois, costumava queixar-se constantemente: "agora, já nem conduzir posso", dizia. "Não posso ir a lado nenhum."

Nós concordávamos amavelmente, procurando não transparecer que estávamos alivíados por já não ter a carta. Durante meses, conduziu de forma perigosa e a preocupação de que pudesse ter um acidente ou atingir alguém era constante.

Até preparámos tudo para que fizesse um exame de condução antes de lhe ser diagnosticada demência. Eu e a minha irmã leva-mo-lo a um centro de exames e esperámos enquanto fazia a prova acompanhado por um examinador. 

Tínhamos pensado alegremente que lhe suspenderiam a carta, visto que já nem conseguir recordar-se em que dia da semana estávamos. Mas, quando terminou, regressou radiante. Tinha passado e deram-lhe luz verde para mais seis meses.

"Eu bem vos dizia", replicava triunfante a caminho de casa. "Era tudo ridículo."

A única coisa que me ocorre é que deveriam ter a fasquia muito baixa. Embora não saiba se nos seria permitido estar no carro durante o exame, estávamos na mesma sala em que realizou a prova teórica em que deveria testar os seus conhecimentos. Do que recordo, não fez propriamente um brilharete.

Porém, no mundo moderno, quatro rodas significam liberdade e é compreensível que retirar a carta de condução a alguém não seja fácil. De facto, a capacidade residual do meu pai para conduzir manteve-se durante mais tempo que muitas das suas outras capacidades. Depois de já não conseguir cozer um ovo ou mudar os canais da televisão, ainda conduzia em piloto automático, alternando as mudanças e contornando as ruas como sempre fizera.

Quando finalmente perdeu a carta como consequência direta de lhe ser diagnosticado Alzheimer, e ainda antes de terminar o prazo de seis meses que lhe haviam dado no centro de exames, já podem imaginar que não aceitou muito bem esta nova situação. Durante meses, continuou a falar sobre os carros que as pessoas conduziam, como sempre fizera, ralhando com o meu marido por ter passado para o outro lado quando comprou um Volvo. 

Agora, tudo se foi. Os carros fazem parte do mundo exterior em que já não participa. No entanto, eu própria fui de carro visitá-lo a Cornwall há quinze dias. Era a primeira vez que me punha ao volante depois de tanto tempo, pois em Londres não tenho carro e fiquei muito surpreendida com o quanto me fazia recordar o meu pai. Foi ele que me ensinou a conduzir assim que cumpri dezassete anos e, desde então, utilizei sempre o carro. Por isso, era quase como se ele estivesse no lugar do copiloto, dizendo-me para meter a quinta para poupar combustível ou para acelerar nas curvas porque era mais seguro. 

O contraste entre essa versão mandona que tinha na minha cabeça e a que me esperava na residência foi tremendo, mas também senti isso como reconfortante. As lições que tinha aprendido há tanto tempo ainda estavam bem gravadas no meu cérebro, mesmo depois de terem desaparecido do dele. 

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