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29/06/15

Pelo pai: Os cuidadores

Rebecca Ley, The Guardian

É difícil cuidar de alguém com demência em estado avançado. São imprevisíveis, por vezes agressivos e precisam de ajuda para se vestirem, comer ou ir à casa de banho. O seu encanto foi desaparecendo aos poucos, exceto nos seus esporádicos momentos de lucidez, e são uma lembrança constante da etapa final da vida. A muitos de nós, o trabalho ajuda-nos a não pensar na fragilidade humana. Para os cuidadores destas pessoas, é algo com que se deparam diariamente. 

Por isso, é preciso um tipo especial de pessoa para fazer um bom trabalho, geralmente pago como salário mínimo nestas circunstâncias tão difíceis e deprimentes.

Desde que o papá adoeceu, uma das coisas mais importantes que aprendi foi começar a observar quantas pessoas destas existem por aí. Fora da vida urbana a que estou acostumada, com pessoas preocupadas com o preço da casa, com a bolsa ou com prémios, existe outro mundo onde, em silêncio, há quem faça algo muito mais significativo. 

Claro que para alguns cuidadores isto é só um trabalho – um dos mais fáceis de conseguir numa zona rural pobre quando se tem poucas qualificações. Mas para um grande número deles, dedicarem-se ao cuidado dos outros é uma vocação. Fazem-no tão bem e procuram que os seus pacientes tenham tamanha dignidade que é verdadeiramente inspirador vê-los.

Embora, nos 2 anos últimos anos, tenha estado por vezes distraída e centrada apenas na última crise do meu pai, é certo que fui encontrando consolo nas qualidades que oferecem estes cuidadores natos. A primeira, e mais importante, é a sua amabilidade. Parece óbvio, mas algumas pessoas têm, de facto, um encanto especial. Acalmam-te a ti e ao teu pobre familiar que sofre de demência. E todos nos sentimos aliviados por podermos respirar um pouco.  

Entre todas as qualidades, o entusiasmo fica para segundo plano. A vida numa residência para doentes com demência não é muito excitante, por isso é admirável a capacidade de encarar esses longos e entediantes dias com um sorriso. Nunca esquecerei a tarde em que fui visitar o meu pai e uma das cuidadoras pôs na televisão da sala principal o filme Ressaca em Las Vegas para vermos todos juntos.

Só a uma imagem de uma sala cheia de pessoas apáticas com Alzheimer vendo um filme onde se narram as aventuras de uma série de bêbados em Las Vegas era, no mínimo, incoerente. Certamente que nenhum deles percebia nada do que se estava a passar, mas a cuidadora sentou-se connosco e começou a rir-se às gargalhadas, enchendo assim a sala de vida.

Outra das coisas que reparei é que os cuidadores realmente bons fazem com que tudo pareça normal. Perante uma situação de declínio terminal, a tarefa de tornar cada dia digno de nota é uma autêntica dávida. 

O medo consegue roubar-nos a alegria dos pequenos prazeres da vida: uma chávena de chá, uma fatia de bolo, as músicas da rádio, uma bisbilhotice engraçada... E alguns cuidadores estão, de facto, capacitados para incrementá-los. A compostura também é importante. Quando alguém está a perder, lenta mas inevitavelmente, o controle da sua bexiga e esfínteres, com os consequentes percalços e vergonha que tal provoca, um certo sangue frio nunca cai mal. 

Também constatei que os melhores cuidadores do meu pai têm uma grande flexibilidade. São capazes de reunir todas as palavras e frases desconexas que lhes dizem e transformá-las numa espécie de conversa. Ficam contentes com os seus elogios e mostram-se realmente interessados nas estranhas coisas que dizem. 

Além disso, têm tato. Não se esquivam aos seus abraços nem quando lhes querem acariciar o rosto. Não lhes negam essa fundamental necessidade humana de tocar o outro e isso dignifica-os.

É precisamente esse laço de humanidade que um cuidador especializado ajuda a preservar. Os pacientes de demência são, ao fim e ao cabo, pessoas como tu e eu. O que lhes acontece a eles poderia acontecer a qualquer um de nós e, se assim for, com certeza gostaríamos que alguém nos pegasse na mão. 

13/10/2015. 8:17 pm

Acácio Moreira escreveu:

mais uma vez obrigado pela história, talvez por ser um jornalista do The Guardian seja a explicação pela excelente narrativa, muito fácil de entender onde cada frase nos transporta para o respectivo cenário.
adorei ler

14/10/2015. 1:01 pm

Cvirtual escreveu:

De nada, Acácio! E ficamos muito felizes que tenha gostado de ler. Continuaremos a publicar mais relatos de Rebecca Ley e do seu dia a dia perante a doença de Alzheimer do pai. Um abraço da equipa do Centro Virtual.

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