blogue

09/07/14

Melancolia: a vida que se vai e não regressa mais...

O cheiro da ausência. Cheiro a mofo. Cheiro a uma morte prematura. Nunca tinha percebido este cheiro ao entrar nesta casa. Mas desta vez era evidente, atravessou-me e recordo-me de que já ninguém vive aqui. O cheiro da ausência. O cheiro a mofo, é o que é. Cheiro de uma morte prematura, da morte da vida nesta casa.

É difícil dizer adeus ao que vivemos num lugar. Alguns chamam-lhe aura, outros recordações. Digo a mim mesmo que tenho de me preparar para não voltar a escutar o ruído do vento contra as cortinas da porta, dos potes conflituantes sobre o fogão a gás ou sobre a pia, do esquentador que se liga ao correr da água quente, do crepitar do fogo na chaminé, da televisão algaraviando o sotaque brasileiro das telenovelas, o ruído dos vasos contra o mármore da mesa da cozinha... Tudo isso enterrado nas minhas recordações, embutido em cada fenda das paredes, em cada veia da madeira, em todas as fissuras das pedras. Os nossos risos, os nossos jogos, nós, os quatro netos - Aurélia, Mateus, Filipa e João Luís - os nossos jogos de futebol improvisados na praça da Câmara Municipal, com os paralelepípedos como alvo, os gatos (Neca, Neca, Neca!), o matar das moscas com o pano, o dinheiro para os gelados, o café do Zé Quim, o meu avô sentado na ponta da mesa com um copo de vinho, a sua sopa, o seu pedaço de pão já depois do café da manhã, do almoço ou do jantar e ainda a minha avó a comer à parte, sozinha no sofá, os animais ao lado da casa, os burros, as galinhas, a cabra... Esta casa é tudo isso. Tudo o que nos ensinou a gostar do que temos.

Copyright, Jean-Louis Grobel

Também é duro dizer a mim próprio que não vou voltar a ver a minha avó a ir ao jardim para dar de comer às galinhas e trabalhar na terra... que não a vou ver mais na cozinha, a preparar a comida. Que não a vou ver a dar de comer aos gatos ao mesmo tempo em que ralha com eles por terem saltado para cima da mesa... Era ela que enchia a casa de vida, de força omnipresente com os seus olhos e que há pouco tempo desapareceu, tal como a sua presença. A minha avó tinha muito orgulho. Tinha orgulho e era forte. Até que a doença começou a invadir o seu corpo. Vive com ela agora. Mal. Recordo-me, no entanto, das conversas que tivemos há pouco tempo. Eu não entendia tudo, reconheço. Tocava-me no rosto, dizendo que eu era um homem, um homem jovem e bonito. Lembro-me das suas reprimendas por não ter recebido o batismo. Ficaria preso no purgatório, como os animais. Recordo-me do seu amor pelo Papa João Paulo II e das suas reservas relativamente a Bento XVI. Mas não importava, afinal era ele o representante da Igreja. Recordo-me de que rezava na sala de estar todas as noites, sentada ao lado da televisão e passando o rosário pelos dedos. Lembro-me das suas lágrimas quando falava do passado. Esta casa está cheia disso.

Copyright, Jean-Louis Grobel

Realmente não trocámos muitas palavras. Falo pouco português para ter uma verdadeira conversa. Mas as conversas eram distintas. Diz-se que 70% da comunicação é não-verbal. Esse era o nosso caso. Até bem mais. Os olhares, fortes e expressivos, às vezes húmidos de emoção, sorrisos sempre sinceros, as mãos dela no nosso rosto, nos nossos ombros... Os gestos de amor onde as palavras não têm lugar porque estorvam, uma magia instantânea, do sangue, do coração, de história compartilhada, uma osmose em que tudo está dito sem que as bocas tenham de se abrir. Uma família separada por quilómetros, mas também pelo idioma. Mas não importava. Estava tudo dito. Em silêncio, mas tudo estava dito. O estritamente necessário, o básico, o que nos permitiu ser o que somos: a minha irmã, o meu irmão e eu.

Isso é tudo o que vou perder desta casa. O amor simples e forte. Dos meus avós que tanto me ofereceram.

A vida foi-se desta casa e não volta. Ou pode ser que sim...

Jean-Louis Grobel

Submeter um novo comentário